Chaves, o seriado mexicano criado há 42 anos e exibido ininterruptamente há mais de 30 aqui no Brasil, é um dos grandes patrimônios históricos e culturais da TV brasileira (especificamente do SBT). Com suas infinitas reprises, as aventuras do jovem “El Chavo Del Ocho” e os inusitados moradores da vila onde a história se passa conquistou uma legião de fãs, dos que nasceram na década de 70 até mesmo aos recentes anos 2000. Eu, inclusive, fui um dos fãs desse programa.
Infelizmente, depois de algum tempo comecei a achar bem bobinho e parei de assistir. E não sinto toda essa nostalgia que tomou conta da internet nos últimos anos. Com esse pensamento, parei para analisar o enredo de Chaves e cheguei a uma conclusão assustadora sobre a história e seus personagens. Gostaria de compartilhar essas observações com você, caro leitor, nesse Dossiê Especial Rafa Barbosa – Um olhar sociológico sobre Chaves.
Não, o meu texto não tem nada a ver com a metáfora de que o universo de Chaves seria uma parte do inferno, como explica o artigo Pecados, demônios e tentações em Chaves da Revista Bula.
O meu artigo aborda justamente o aspecto humano e politicamente incorreto dos personagens.
Se você é fã do seriado, sinta-se a vontade para ler, discutir, me xingar ou concordar com a análise a seguir. Mas lembre-se: é apenas a minha visão sobre o programa e não quer dizer que eu esteja certo (sim, eu estou certo já que o blog é meu).
1 – Chaves
Para começar, vamos analisar a história do personagem principal e que dá nome ao seriado, o garoto Chaves.
Chaves (Chavinho para os íntimos) é um órfão. Não preciso nem continuar a descrever o personagem. Para começo de conversa, em que sociedade minimamente organizada um órfão vive tranquilamente sozinho em uma vila, passando a maior parte do dia “brincando” e se metendo em confusões?
Onde está o Conselho Tutelar mexicano que em nenhum momento recebeu denúncia sobre essa situação? Não há nenhum parente vivo? Nenhum amigo dos pais ou responsáveis a par da situação?
Lembre-se, o Chaves não mora no Barril. Ele mora na casa número Oito, que dá o nome original do programa.
Outro ponto é: Senhor Barriga cobra os eternos 14 meses de aluguel do Seu Madruga, mas e o aluguel da casa do Chaves? Fica sob a responsabilidade de quem? Já estão pagos? Chavinho é o próprio locatário? Está em nome de quem?
Pode-se alegar que o Senhor Barriga sabe da situação e faz a “caridade” de não cobrar do pequeno órfão. Mas por que ele não faz o mesmo com o Seu Madruga, que tem uma filha para criar?
É muita coisa errada só com o personagem principal que vocês nunca questionaram.
Felizmente, Chaves não fica completamente desamparado, já que ao menos frequenta a escola, mesmo não sendo um dos alunos mais brilhantes da turma.
2 – Seu Madruga
Seu Madruga, o personagem mais adorado pelos fãs do seriado. Poderíamos usar vários adjetivos para descrevê-lo, mas vamos nos focar nas principais características do personagem:
– Desempregado
– Vagabundo
– Caloteiro
– Praticante de violência infantil
Exagerei? Vamos por partes então.
Desempregado e Vagabundo
Não há mal algum em ser desempregado. Acredito que a situação econômica do México nos anos 70 não era das melhores, apesar de ter sediado uma copa do Mundo pouco tempo antes. Mas será possível que não havia nenhuma oportunidade para o Seu Madruga?
Em vários episódios vemos o personagem dando um jeito de escapar de trabalhos temporários ou subempregos. A série se passa no México, mas o personagem é basicamente um retrato fiel de grande parte dos brasileiros. Provavelmente é o motivo por ser o mais adorado por aqui.
Fico surpreso que mesmo sem ter um emprego fixo ou uma fonte de renda confiável, Seu Madruga ainda consiga manter a guarda da filha Chiquinha.
Caloteiro
Senhor Barriga cobra, diariamente, os 14 meses de aluguel que o idolatrado Seu Madruga deve. Em qualquer outra situação, os serviços de crédito já teriam sido acionados. O despejo seria inevitável. E na verdade, o foi. Porém, em um surpreendente momento de altruísmo, o Senhor Barriga desistiu na última hora de despejar pai e filha.
E não ouvi nem um obrigado da parte do Seu Madruga. Além de tudo é mal agradecido.
Praticante de violência infantil
Em todos os episódios, religiosamente, Seu Madruga tem que dar pelo menos um cascudo no Chaves. É uma tradição que não pode passar batida. E a violência acontece, na maioria dos casos, sem a menor justificativa. Apenas pelo simples fato de Chaves ter uma curiosidade natural acerca da vida. Ou por ser desastrado mesmo.
Sorte se os abusos ficassem somente no pobre Chavinho. Mas Seu Madruga deveria estar nas listas de mais procurados por esse tipo de abuso. Todas as crianças da vila (ou do seriado, eu diria) já apanharam pelo menos uma vez do nosso adorado ex-boxeador.
Isso mesmo. O “heroi” que bate em crianças é um ex-boxeador. Possui a força (apesar do físico visivelmente frágil) e as habilidades necessárias para desferir golpes potentes que poderiam nocautear uma simples criança.
Mas esse fato é completamente ignorado pelos fãs, pela sociedade e pelas autoridades em geral.
Além disso, é covarde. Bate em crianças, mas afina quando tem que encarar alguém como Professor Girafales ou o próprio Senhor Barriga.
3 – Dona Florinda e Kiko
O que dizer dessa família? Parecem pertencer aparentemente como os demais moradores da vila, a uma classe C que ainda não entrou em processo de ascensão econômica. E só eles não se deram conta disso, pois tratam todos os demais moradores como se fossem a escória do mundo. Como se fossem lixo.
A principal culpada disso é Dona Florinda. Uma mulher que vive à sombra do falecido marido, que provavelmente está melhor agora do que ao lado dessa senhora. Vive da pensão alimentícia deixada pelo saudoso navegador, mas age como se fosse a verdadeira provedora do lar, quando na verdade é tão desempregada quanto o seu nêmesis Madruga.
O reflexo dessa atitude pode ser visto em seu filho, Frederico. Um garoto tipicamente mimado por ser filho único. Tem os melhores brinquedos e adora exibi-los para os amigos menos favorecidos, mas sente uma enorme inveja da criatividade dos outros por se divertirem tanto com tão pouco, enquanto ele não consegue o mesmo com os seus mais avançados instrumentos de entretenimento.
Como a mãe, acredita que os demais moradores não deveriam estar ali. Principalmente o Seu Madruga, o qual adora chamar de “gentalha”, um adjetivo pejorativo que demonstra qual posição social o ex-boxeador deveria pertencer.
Como uma boa partidária de extrema direita, Dona Florinda adora exercer a sua repressão chegando às vias de fato com Seu Madruga em toda e qualquer oportunidade, aplicando o tradicional tapa na cara. Como é uma típica cidadã da classe médica, é moderadamente ciente dos seus direitos e sabe que o ex-boxeador não pode agredi-la em defesa.
Uma verdadeira tirana e um retrato fiel da história mexicana, demonstrando nos dias de hoje como foi a dominação europeia sobre o ameríndio.
Como se não bastasse a soberba, os dois ainda adoram explorar as vantagens sociais obtidas com o relacionamento de Dona Florinda e Professor Girafales. Kiko sempre tenta se beneficiar na escola, porém, a sua baixa capacidade intelectual não o ajuda muito nesse quesito.
O que nos leva a mais um personagem incorreto nessa série.
4 – Professor Girafales
Gosto de acreditar que a ética é algo inerente à pessoa que dedica a sua vida a ensinar ao próximo. Mas esse não parece ser o caso do professor da escolinha do bairro.
Notando a situação frágil a qual se encontra uma viúva, mãe de um filho com intelecto duvidoso, o “mestre Linguiça” não pensou duas vezes em aceitar uma xícara de chá na casa de Dona Florinda.
Se você notar bem, a xícara de chá é uma metáfora para o sexo. Geralmente ocorre quando Kiko não está em casa, o que possibilita a relação sexual entre sua mãe e o professor.
Não sou o melhor entendedor do assunto, mas acredito que um professor ter um relacionamento amoroso com a mãe de um aluno é algo no mínimo questionável e que deveria ser levado ao conhecimento da diretoria da escola.
Infelizmente, a série deixa claro que aquela escola é basicamente um lugar para as crianças passarem o tempo, já que o ensino é de qualidade duvidosa e não vemos nenhum tipo de disciplina.
Se existisse uma diretoria, deveriam ficar de olho. Se já dá em cima da mãe de um aluno, quem dirá daquelas garotinhas que usam vestidos tão curtos que a calcinha fica a mostra? Temos um predador sexual em potencial. Avisem as autoridades mexicanas.
5 – Dona Clotilde
A “famosa” Bruxa do 71 não tem essa alcunha a toa. Uma conhecida praticante das artes ocultas, Clotilde é uma satanista de mão cheia e que não faz questão de esconder isso, pois o nome do seu gato e eventualmente cachorro é uma clara homenagem à única divindade a qual ela serve: Satanás.
Clotilde, apesar de praticante desse tipo de magia, é uma mulher comum como qualquer outra. Uma solteirona convicta, mas que tem um desejo latente pelo seu vizinho de porta, o Seu Madruga. Espera que um dia possa ter a oportunidade de casar com ele e trazer ao mundo o herdeiro de Lúcifer, nem que para isso seja necessário a criação de poções e feitiços de amor.
6 – Senhor Barriga e Nhonho
Os dois representam os ideais e os interesses das classes dominantes da sociedade mexicana. O pai, um bem sucedido empreiteiro, tem como fonte de renda o aluguel das casas de sua vila. Rendimento o qual não deixa de buscar religiosamente todos os meses.
Um empresário implacável, que vai a caça dos seus devedores como Seu Madruga, mas que vez ou outra demonstra um pouco de humanidade e perdoa dívidas que poderiam estar na casa dos milhares.
Apesar de um predador comercial, é um ser humano bondoso, já que não se vinga das pancadas que recebe diariamente ao chegar ao seu empreendimento.
Já Nhonho, seu filho e herdeiro do império, é um retrato fiel do jovem abastado financeiramente. Veste as melhores roupas, tem os melhores brinquedos, conta vantagem sobre os coleguinhas e apresenta o físico típico de uma pessoa que come apenas do bom e do melhor: é gordo.
Apesar de todos os benefícios que possui por ser branco e de classe alta, o jovem estuda na mesma escolinha que os seus amigos, provavelmente no subúrbio onde se encontra a vila.
Um contraste interessante para reforçar a desigual luta de classes no seriado.
Poderíamos citar ainda outros personagens, como Jaiminho, o carteiro e funcionário público que não pensa duas vezes antes de enrolar e deixar o trabalho para depois. Em suas palavras, prefere evitar a fadiga.
Temos também a avó de Chiquinha, Dona Neves, que aparentemente não se importa com o fato da neta morar com um pai desemprego e à mercê das “situações” que uma criança nessa situação de risco está exposta.
Poderia analisar também os vários personagens secundários da história, mas fiquei com bastante preguiça de rever alguns episódios. Afinal, são muitos anos em exibição e esse estudo não poderia demorar tanto a sair.
Conforme expus nos parágrafos acima, o seriado Chaves é uma verdadeira ode aos piores estereótipos sociais e pode ser visto tanto como uma crítica social genial de Roberto Gomes Bolaños ou então uma simples coleção de personagens politicamente incorretos e que praticam as piores atrocidades em seu pequeno círculo social.
O espaço de comentários é aberto para que vocês possam discutir, comentar, me xingar ou concordar com esse breve estudo social.
Espero que tenham gostado desse Dossiê Rafa Barbosa mais que especial.
Oie.
Muito bom.
Não sei se concordo que o seriado seria apenas uma crítica social, mas acredito que sim. É um excelente “tapa na cara da sociedade” e nos diverte. Ok, talvez conjugar esse verbo no passado seria melhor, pois também não assisto mais.
Confesso que não sabia que o Chaves morava no nº 8… como assim ? Na verdade acreditava na versão que diziam que ele era rico, mas escondia de todos para ver como seria tratado por ser pobre. E que o seu barril dava em um túnel para sua mansão.
Enfim… especulações ! Terei que rever tudo que via quando criança, que memória péssima…
Ótimo post.
Bjoos
Artigo F**! Muito bom.